Imagine uma estrada longa e deserta, onde o destino final — a casa própria — se afasta a cada passo dado, um horizonte que recua enquanto caminhamos em passos cansados. Para milhões de pessoas, essa metáfora define o mercado imobiliário e explica por que o sonho da casa própria se tornou um objetivo cada vez mais distante. Os preços das casas descolaram-se da realidade dos salários. Se o dinheiro fosse uma árvore, a base monetária seria a raiz — escondida, mas vital. É o dinheiro que o banco central cria: as notas e moedas que você usa e o que os bancos guardam com ele. A base monetária é a quantidade total de dinheiro que o banco central de um país coloca em circulação diretamente. Ela é composta por notas e moedas que estão nas mãos do público e em caixas de bancos, somadas ao dinheiro que os bancos comerciais mantêm depositado no banco central, que serve como reserva obrigatória ou excedente. No Brasil, por exemplo, o Banco Central controla a base monetária, que em fevereiro de 2025 era estimada em cerca de R$441 bilhões, segundo dados aproximados do Banco Central do Brasil.
Em 15 de agosto de 1971, Richard Nixon, em um pronunciamento televisionado, anunciou que o dólar deixaria de ser conversível em ouro, acabando com os acordos de Bretton Woods, vigentes desde 1944. O sistema de Bretton Woods, estabelecido em 1944, atrelava as moedas mundiais ao dólar, que por sua vez era lastreado em ouro. Em 1971, o presidente Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, transformando-o em uma moeda fiduciária, sem lastro físico. Com isso, os bancos centrais, como o Federal Reserve dos EUA, passaram a ter liberdade para expandir a base monetária de forma significativa. Nos Estados Unidos, por exemplo, a base monetária cresceu de US$ 50 bilhões em 1960 para US$ 6,4 trilhões em 2020. Essa expansão, sem um aumento equivalente na produção de bens e serviços, resultou em inflação: na década de 1970, os índices nos EUA chegaram a 14% ao ano, e o dólar perdeu cerca de 85% de seu valor até 2023. O impacto, no entanto, não foi instantâneo, pois o sistema bancário amplia o dinheiro de forma gradual, políticas como o aumento das taxas de juros nos anos 1980 ajudaram a conter os preços temporariamente, e parte desse dinheiro novo foi absorvida por ativos como ações e imóveis, inflando seus valores. Dessa forma, o fim de Bretton Woods abriu caminho para uma era de dinheiro abundante, que enfraqueceu o poder de compra e gerou efeitos econômicos profundos e duradouros em escala global.
O gráfico “Monetary Base: Total” apresenta o aumento da base monetária nos EUA:

O aumento da base monetária nos EUA, que saltou de US$50 bilhões em 1960 para US$6,4 trilhões em 2020, segundo o Federal Reserve, não foi acompanhado por um crescimento real equivalente na economia. Aumentar a base monetária sem um aumento correspondente na riqueza gera inflação porque o dinheiro, em essência, é uma representação da riqueza existente numa economia. Imagine que uma economia tenha uma quantidade fixa de riqueza, digamos, um valor X, que é representada por uma quantidade específica de dinheiro em circulação. Se essa quantidade de dinheiro aumenta, mas a riqueza X permanece a mesma, o valor que cada unidade de dinheiro representa diminui. Isso acontece porque agora há mais dinheiro “disputando” a mesma quantidade de bens e serviços, o que faz com que os preços subam para refletir essa nova relação entre oferta de dinheiro e riqueza disponível. Esse processo é a inflação: o aumento dos preços causado pela desvalorização do dinheiro em relação à riqueza real. Em resumo, quando a base monetária cresce sem um aumento proporcional na produção de bens e serviços, o excesso de dinheiro dilui seu valor, levando a um ajuste nos preços que reflete a perda de poder aquisitivo.
Numa economia com lastro em ouro, a base monetária não pode crescer livremente sem um aumento correspondente na riqueza, pois a quantidade de dinheiro está vinculada às reservas de ouro. O governo ou banco central, teoricamente, só pode emitir moeda até o limite do ouro disponível, o que restringe expansões excessivas. Se a riqueza real — bens e serviços — não aumenta, emitir mais dinheiro exige mais ouro, algo inviável com um estoque fixo. Por exemplo, se cada nota representa uma fração do ouro em reserva, a quantidade de dinheiro não pode simplesmente dobrar, como em sistemas fiduciários. Isso mantém os preços estáveis, já que não há excesso de moeda para a mesma quantidade de bens. A inflação só surge se a produção de riqueza cai ou se o estoque de ouro cresce, como numa nova descoberta. Mesmo assim, esses ajustes são graduais e menos voláteis.
O gráfico a seguir traça a história do salário mínimo nos EUA de 1938 a 2024, com o valor em dólares por hora. A linha azul, que representa o salário sem ajuste de inflação, começa em cerca de US$0,25 por hora em 1938, sobe para US$0,75 por volta de 1950, atinge US$3,01 em 1980 e chega a US$7,25 em 2009, onde permanece estável até 2024. Já a linha preta, que mostra o salário nominal ajustado pela inflação para dólares de 2024, começa em US$5,43 em 1938, cresce até US$13,05 em 1970 (seu pico histórico), cai para US$9,20 em 1990 e fica quase plana entre US$7,00 e US$7,50 de 2009 a 2024.
De acordo com o gráfico “Real and nominal value of the federal minimum wage in the United States from 1938 to 2024“, essa foi a evolução salarial dos americanos entre os anos 1940-2020:

A mudança mais marcante acontece entre 1968 e 1980. Até 1968, o salário real subia junto com o nominal, refletindo ganhos para os trabalhadores. Mas depois disso, enquanto o salário nominal continuou subindo (de US$1,60 em 1970 para US$3,10 em 1980), o valor real caiu, mostrando que o aumento salarial não acompanhou a inflação. A partir de 2009, com o salário nominal fixo em US$7,25, o valor real ficou estagnado, oscilando entre US$7,00 e US$7,50, apesar do aumento do custo de vida. Isso indica que o salário mínimo perdeu poder de compra nas últimas décadas, especialmente após os anos 1970, coincidindo com o fim do padrão-ouro. Esse marco de 1971, quando o dólar deixou de ser ligado ao ouro, permitiu que o governo criasse dinheiro sem limites e sem estar plenamente vinculado a economia real.
O Jornal americano CNBC demonstra no artigo “Here’s how much housing prices have skyrocketed over the last 50 years“ o aumento dos preços das casas nos Estados Unidos ao longo das décadas. Em 1940, o preço médio de uma casa era de US$2.938, subindo para US$47.200 em 1980 e chegando a US$119.600 em 2000. Ajustados para a inflação em dólares de 2000, esses valores seriam US$30.600 (1940), US$93.400 (1980) e US$119.600 (2000), mostrando que o custo real das casas triplicou em 60 anos. Em 2020, o preço médio subiu para US$300.000 e em 2025, o preço médio subiu para aproximadamente US$400.000 com valores bem mais altos em cidades como Nova York e São Francisco, onde podem ultrapassar US$1 milhão. O artigo da CNBC destaca que os preços crescem mais rápido que a inflação — em 2016, o dobro da taxa inflacionária — e superam o aumento dos salários.
Gráfico do Federal Reserve “Median Sales Price of Houses Sold for the United States” a respeito do aumento do custo dos imóveis:

O crescimento mais significativo ocorre após 1980, com uma trajetória quase exponencial a partir dos anos 2000. Entre 1965 e 1980, o preço subiu cerca de 200% (de US$20.000 para US$60.000), mas de 1980 a 2023, o aumento foi de mais de 600% (de US$60.000 para mais de US$400.000). Isso reflete uma valorização acelerada, especialmente após a crise de 2008, quando o preço caiu para cerca de US$200.000 em 2011 antes de retomar o crescimento, superando US$300.000 em 2015 e alcançando novos patamares até 2023. As flutuações pós-2008 indicam bolhas imobiliárias e ajustes de mercado, mas a tendência geral é de alta contínua.
A inflação foi o primeiro golpe, mas não o único. A desregulamentação financeira dos anos 1980, impulsionada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, abriu as portas para o capitalismo financeiro. Bancos e fundos de investimento passaram a tratar imóveis como papéis negociáveis, não como lares. Nos EUA, a Blackstone, uma grande empresa do setor, acumulou mais de 300 mil unidades residenciais após a crise de 2008, segundo o artigo “How Billionaire Investors Are Disrupting the U.S. Housing Market” da inequality.org. No Brasil, os Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs) movimentam R$150 bilhões na B3, comprando prédios inteiros para lucrar com cotistas que nunca pisarão nesses espaços. Esse rentismo — a busca por renda sem esforço produtivo — criou um paradoxo cruel: quanto mais imóveis são adquiridos como investimento, menor a oferta para quem quer simplesmente comprar o imóvel para morar.
Os fundos imobiliários são como um grupo de pessoas que juntam dinheiro para comprar prédios, casas ou terrenos e lucrar com eles, sem que cada um precise cuidar de tudo sozinho. No Brasil, eles são chamados de FIIs e funcionam assim: investidores colocam seu dinheiro num fundo, que é gerenciado por especialistas. Esse fundo usa o total arrecadado para comprar imóveis — shoppings, escritórios, galpões ou até apartamentos — e depois ganha dinheiro alugando ou vendendo essas propriedades. Quem investe recebe uma parte dos lucros, como um aluguel proporcional ao que colocou, sem precisar ser dono direto de nada. Mas como isso faz os preços dos imóveis subirem? Quando esses fundos entram em ação, eles têm muito dinheiro para gastar — mais do que uma pessoa comum economizando para comprar uma casa. Com essa força, compram prédios inteiros ou bairros de uma vez, como a gigante americana Blackstone, que tem aproximadamente 300 mil propriedades espalhadas nos EUA. No Brasil, fundos como o Vinci Shopping ou o XP Malls focam em propriedades grandes, mas também há os que compram apartamentos para alugar. Isso tira muitas casas do mercado que antes poderiam ir para famílias ou pequenos compradores. Em São Paulo, por exemplo, quase 600 mil imóveis estão vazios ou nas mãos de investidores esperando valorização, segundo o G1. Com menos casas disponíveis, quem quer comprar ou alugar enfrenta uma disputa maior, e os preços sobem. Como os fundos buscam lucro, eles preferem investir em lugares já caros ou com potencial de ficar mais caros, como centros urbanos ou áreas em crescimento. Isso cria um ciclo: os preços aumentam porque os fundos compram, e os fundos compram mais porque os preços estão subindo. Em 2021, durante a pandemia, enquanto milhões perdiam empregos, os imóveis em São Paulo subiram 12%, segundo a FipeZap, porque investidores — incluindo fundos — viram nas casas um lugar seguro para guardar dinheiro. Para o trabalhador comum, sobra o aluguel alto ou a casa cada vez mais longe do trabalho, enquanto o lucro dos FIIs, que pagou R$12 bilhões aos cotistas em 2022, vai para quem já tem capital. Assim, os fundos imobiliários transformam moradia em investimento, deixando o sonho da casa própria mais distante para quem vive de salário.
A interação entre a estagnação salarial e a expansão da base monetária explica o aumento do custo dos imóveis. A desvalorização contínua do dólar, decorrente de políticas monetárias expansionistas e da perda de seu poder de compra ao longo do tempo, tem levado investidores — sejam eles indivíduos com capital próprio ou aqueles que utilizam fundos imobiliários (FIIs) — a buscar refúgio em um ativo que vem sendo chamado de “novo ouro”: os imóveis. Esse movimento é impulsionado pelas características únicas dos imóveis, que os tornam uma alternativa atraente em um cenário de incerteza econômica. Ao contrário de moedas fiduciárias como o dólar, que sofrem com a inflação, os imóveis oferecem uma tendência natural de valorização ao longo do tempo, alimentada por fatores como o crescimento populacional, a urbanização e a escassez de terrenos em áreas com desenvolvimento urbano estabelecido. Além disso, eles proporcionam uma fonte de renda passiva por meio de aluguéis, garantindo retornos consistentes que protegem o patrimônio contra a erosão inflacionária.
Os imóveis ganham ainda mais força quando comparados a reservas de valor tradicionais, como o ouro. Historicamente, o ouro é valorizado por sua escassez, durabilidade e capacidade de atuar como uma segurança contra a desvalorização monetária. No entanto, ele não gera renda passiva, limitando seu apelo para investidores que buscam crescimento além da mera preservação de valor. Os imóveis, por outro lado, combinam a escassez — especialmente em regiões urbanas de alta demanda — com a vantagem de gerar lucros regulares através da locação. Essa dualidade os torna não apenas uma reserva de valor, mas também um investimento ativo, capaz de oferecer estabilidade e retorno financeiro em tempos de dólar enfraquecido.
Outro ponto que consolida os imóveis como o “novo ouro” é sua acessibilidade a diferentes perfis de investidores. Para aqueles com maior capacidade financeira, a compra direta de propriedades permite aproveitar tanto a valorização do ativo quanto os ganhos com aluguéis. Já os fundos imobiliários (FIIs) “democratizaram” esse mercado, possibilitando que investidores com menos recursos participem ao adquirir cotas de imóveis, recebendo dividendos regulares sem a necessidade de administrar os imóveis por conta própria. Essa flexibilidade amplia o alcance desse tipo de investimento, tornando-o uma opção viável para quem busca diversificar os investimentos em um contexto de desvalorização monetária.
A relação entre a queda do dólar e o mercado imobiliário também reforça essa tendência. Quando o dólar perde valor, os investidores procuram ativos que mantenham seu poder de compra em termos reais, e os imóveis se destacam por sua natureza material (real) e pela demanda constante por moradia e espaços comerciais. Esse movimento é ainda mais evidente em um cenário de incerteza econômica, onde a busca por estabilidade leva a uma procura crescente por propriedades. Assim, os imóveis emergem não apenas como uma proteção contra a inflação, mas como uma estratégia de crescimento sustentável.
A estagnação salarial tem impactado profundamente a capacidade das pessoas de comprar imóveis, especialmente em um cenário onde os salários não acompanham a inflação e o poder de compra diminui progressivamente. Enquanto a moeda se desvaloriza devido a fatores como políticas monetárias expansionistas, os imóveis tornam-se cada vez mais caros, impulsionados pela crescente demanda de investidores que veem nessas propriedades uma reserva de valor e uma fonte de retorno financeiro por meio de aluguéis. Esse movimento cria um desequilíbrio no mercado imobiliário: de um lado, trabalhadores com salários estagnados enfrentam a erosão de seu poder aquisitivo, o que os impede de acompanhar a escalada dos preços das propriedades; de outro, investidores com maior capacidade financeira adquirem imóveis como proteção contra a desvalorização monetária, elevando ainda mais os custos e tornando a competição desigual. Assim, para muitos indivíduos, o sonho de adquirir uma casa própria se distancia, já que o valor dos imóveis cresce em um ritmo muito superior ao dos salários.
Esse fenômeno é agravado pela dinâmica de oferta e demanda no mercado imobiliário. Com a moeda perdendo valor, os investidores priorizam ativos tangíveis como imóveis, que oferecem tanto valorização a longo prazo quanto renda passiva, características que reforçam sua atratividade em tempos de incerteza econômica. Como resultado, os preços das propriedades sobem, enquanto a estagnação salarial mantém a maioria da população em uma posição de desvantagem financeira. Dessa forma, a combinação de salários que não crescem, uma moeda desvalorizada e a valorização dos imóveis por ação de investidores cria um ciclo que dificulta cada vez mais o acesso à propriedade, ampliando a desigualdade e comprometendo as gerações futuras. Comprar uma casa ou propriedade permite não só proteger o capital contra a erosão inflacionária, mas também obter renda com aluguéis, especialmente em mercados aquecidos como São Paulo ou cidades americanas como Nova York.
O Airbnb revolucionou o setor de hospedagem ao oferecer uma alternativa aos hotéis tradicionais, incentivando proprietários a converterem imóveis residenciais em aluguéis de curto prazo. Esse movimento reduziu drasticamente a oferta de moradias para residentes, especialmente em cidades com alta demanda turística. Em Lisboa, por exemplo, moradores buscam uma votação para proibir o Airbnb. Isso demonstra como a plataforma contribui para a escassez de moradias acessíveis, elevando os preços dos aluguéis de longo prazo e forçando moradores a se deslocarem para periferias. Além da pressão imobiliária, a expansão do Airbnb transforma a dinâmica de bairros inteiros. Áreas residenciais se tornam “vitrines turísticas”, com a substituição de moradores permanentes por visitantes temporários. Isso afeta a identidade local, erode a coesão comunitária e altera a qualidade de vida. Residentes relatam a sensação de perda de seus espaços, com o aumento de ruídos, trânsito e a “turistificação” de suas ruas. Diante desses desafios, diversas cidades implementaram medidas para conter os efeitos negativos do Airbnb. Barcelona é um exemplo emblemático: Prefeito da cidade anunciou plano para encerrar todos os aluguéis de curta temporada até 2028, a fim de conter o aumento exorbitante dos aluguéis para os moradores, de acordo com a CNN. Nova York, Singapura e Japão também adotaram restrições, como limites ao número de dias por ano em que um imóvel pode ser alugado ou exigências de licenciamento rigoroso, como demonstra o artigo The Role of Airbnbs in America’s Housing Crisis. Essas iniciativas buscam equilibrar o turismo com o direito à moradia, protegendo as comunidades locais da especulação imobiliária. O Airbnb, ao transformar a forma como viajamos e nos hospedamos, gerou benefícios econômicos para proprietários e turistas, mas também trouxe desafios profundos para o mercado imobiliário e as comunidades locais. Seu impacto vai além do aumento dos aluguéis, afetando a identidade dos bairros, a economia municipal e o acesso à moradia.
No centro de São Paulo, proprietários deixam prédios apodrecerem, acumulando dívidas de IPTU enquanto esperam pacientemente a valorização impulsionada pela gentrificação para lucrar com a venda futura. Enquanto isso, trabalhadores expulsos para a periferia enfrentam jornadas de até quatro horas diárias para chegar ao centro, onde se concentram escritórios e serviços. Em 2019, 1,5 milhão de pessoas na Grande São Paulo faziam esse trajeto, pagando aluguéis em Itaquera ou Guarulhos e enfrentando trens e ônibus lotados. Se o Estado deixasse de ser um agente da precarização, transformando esses prédios ociosos em moradias acessíveis, a cidade poderia se transformar: menos trânsito, menos emissões e mais dignidade para seus habitantes. Políticas como a aplicação do IPTU progressivo ou incentivos para a conversão de imóveis vazios em habitação social poderiam desincentivar a especulação e atender às necessidades da população. No entanto, a inação do poder público muitas vezes perpetua esse ciclo, permitindo que a busca por lucro prevaleça sobre o bem-estar coletivo. A especulação imobiliária, alimentada por proprietários que mantêm prédios vazios à espera de venda lucrativa, não apenas expulsa os trabalhadores do centro, mas também distorce o mercado, tornando a moradia um privilégio em vez de um direito. Sem mudanças, São Paulo seguirá refém de um modelo que privilegia o capital em detrimento de uma cidade mais justa e habitável.
A função social da propriedade é um princípio jurídico e social consagrado na Constituição Federal de 1988 do Brasil, que redefiniu a relação entre o direito individual de propriedade e o interesse coletivo. Esse conceito, previsto no artigo 5º, inciso XXIII, estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”, e que, nas cidades, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenamento urbano, como o uso adequado do solo, a regularização fundiária e a oferta de moradia ou atividades produtivas. Esse princípio rompe com a visão tradicional de propriedade como um direito absoluto, introduzindo a ideia de que o uso do imóvel deve beneficiar a sociedade, não apenas o proprietário.
O MTST, fundado em 1997, utiliza esse dispositivo constitucional como base para suas ações, ocupando prédios e terrenos para chamar atenção para o déficit habitacional. Um exemplo emblemático é a ocupação do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, antes de seu colapso em 2018. O prédio, vazio por anos, foi ocupado por famílias sem-teto, mas a culminou em um incêndio trágico, que matou sete pessoas e se o Estado tivesse desapropriado e revitalizado o prédio, nada disso teria acontecido. O MTST argumenta que tais ocupações não são apenas atos de desespero, mas uma forma de pressão política para que o Estado cumpra seu papel, como previsto no artigo 6º da Constituição, que garante a moradia como direito social.
A função social da propriedade também está ligada ao Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, que, desde 2014, prevê instrumentos como a desapropriação de imóveis ociosos com pagamento em títulos da dívida pública ou a aplicação do IPTU progressivo no tempo para forçar proprietários a darem uso adequado aos seus bens. Proprietários frequentemente deixam prédios degradarem-se, acumulando dívidas de IPTU, enquanto especulam com a valorização via gentrificação — um processo que beneficia investidores, mas expulsa moradores originais, como visto no centro de São Paulo, onde o metro quadrado pode chegar facilmente a R$10 mil, contra um salário médio de R$3,6 mil (EXAME, 2023).
A luta do MTST, ao evocar a função social da propriedade, desafia a ideia de que o direito à propriedade é absoluto, propondo que ele deve servir à coletividade. Contudo, a resistência de proprietários e a lentidão do Estado em desapropriar ou regularizar imóveis ociosos perpetuam o problema, deixando milhões, como os 1,5 milhão de trabalhadores que enfrentam longas jornadas de transporte na Grande São Paulo, sem alternativas dignas de moradia. A atuação do MTST, nesse contexto, é tanto um ato de resistência quanto uma reivindicação por justiça, exigindo que a cidade seja para todos, não só para quem pode pagar.
Portanto, o fim dos acordos de Bretton Woods em 1971, quando Nixon tirou o dólar do lastro em ouro, transformou o dinheiro em algo baseado apenas na confiança. Isso permitiu que bancos centrais, como o Federal Reserve, criassem dinheiro sem limites: a base monetária dos EUA saltou de US$ 50 bilhões em 1960 para US$ 6,4 trilhões em 2020. Esse aumento não gerou riqueza real proporcional, como mais fábricas ou empregos, mas sim inflação, que desvalorizou o dólar em 85% até 2023. Com o dinheiro valendo menos, investidores correram para ativos sólidos, e os imóveis se tornaram o “novo ouro” — uma proteção contra a inflação e fonte de renda com aluguéis. Políticas de juros baixos e crédito fácil inflaram os preços das casas, que subiram de US$ 30.600 em 1940 para US$ 400.000 em 2025 (valores ajustados pela inflação), triplicando em termos reais. Enquanto isso, os salários estagnaram: o salário mínimo real (ajustado pela inflação) nos EUA caiu de US$ 13,05 em 1970 para US$ 7,50 em 2024. O poder de compra foi corroído e a chance de comprar uma casa se torna cada vez mais distante ano após ano.
Enquanto o mercado financeiro, que errou 95% de suas previsões econômicas desde 2021 (UOL), transforma moradias em papéis de investimento e lucra com o desespero de milhões sem teto, seguimos caminhando por essa estrada deserta — será que é no mercado financeiro que devemos confiar para nos guiar?