American Flagg! e o Futuro Neoliberal: Uma Distopia Profética dos Anos 80

“Em um mundo onde corporações comandam tudo, a violência vira entretenimento e a indiferença social é a norma, American Flagg!, de Howard Chaykin, se destaca como uma obra que não só capturou os medos dos anos 80, mas também previu o futuro que vivemos hoje.” Essa é a visão que Alexandre Linck, do canal Quadrinhos na Sarjeta, traz sobre a série em quadrinhos lançada entre 1983 e 1988. Para ele, American Flagg! é uma crítica feroz ao neoliberalismo, uma distopia caótica que reflete as tendências da era Reagan e Thatcher e que, de forma perturbadora, espelha nossa realidade atual. O quadrinho mostra um futuro onde o capitalismo venceu — e ninguém está feliz com isso. Neste artigo, vamos seguir a narrativa de Linck, mergulhando mais fundo nos temas que ele destaca, trazendo exemplos do quadrinho e conectando-os ao presente para mostrar por que essa obra continua tão relevante.

Para entender American Flagg!, precisamos voltar aos anos 80, uma década de transformações radicais. Era o auge da Guerra Fria, com o colapso da União Soviética se aproximando (ele viria em 1991). Mas o que realmente definiu a época foi o neoliberalismo. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan liderou essa mudança com cortes de impostos para os ricos e o enfraquecimento de sindicatos. No Reino Unido, Margaret Thatcher privatizou serviços essenciais, como água e eletricidade, com sua famosa frase: “Não há alternativa.” O resultado foi um mundo onde as empresas ganharam força inédita, enquanto o Estado recuava.

Esse clima influenciou a cultura pop. Filmes como Blade Runner (1982), com suas megacorporações em uma Los Angeles sombria, e Robocop (1987), onde a polícia de Detroit é privatizada pela OCP, capturaram essa ansiedade. Mas American Flagg! foi além. Publicado pela First Comics, o quadrinho não só reagiu ao presente, como projetou um futuro onde o neoliberalismo triunfa completamente. Linck resume bem: “Os anos 80 venceram” — e o que Chaykin imaginou naquele futuro ecoa assustadoramente hoje, em um mundo das big techs e da desigualdade crescente.

Na distopia de American Flagg!, o ano é 2031. Tudo desmoronou em 1996, o “ano do dominó”: um acidente nuclear nos EUA (que destruiu a California), uma pandemia global, o fim da URSS e uma guerra nuclear entre Irã e Israel. Em resposta, o governo americano faz algo impensável: abandona a Terra e se muda para Marte com a elite, deixando o planeta nas mãos da Plex, uma megacorporação que assume o controle de tudo — economia, segurança, cultura. As cidades são transformadas em “Plexidades”, shoppings gigantes onde o consumo é a única regra.

Reuben Flagg, um ex-ator de Marte que vira “Plex Ranger” (um policial corporativo), é o fio condutor dessa loucura. Ele é um patriota irônico, um “herói americano” que mal conhece a América. Ele defende símbolos — a bandeira, o hino —, mas ele nasceu em Marte e só foi pisar no território americano depois de adulto. Linck conecta isso ao patriotismo performático de Reagan e aos “patriotas” de hoje, como brasileiros que idolatram a bandeira mas desprezam a cultura nacional. Chaykin usa Flagg para expor como o nacionalismo pode ser uma ferramenta vazia nas mãos do poder. Para Linck, Flagg é uma sátira ao patriotismo vazio.

Na obra, o neoliberalismo chega ao limite: não há governo, só a Plex. Tudo é privatizado. Hoje, empresas como Amazon e Google têm poder quase estatal: a Amazon controla cadeias de suprimento globais, enquanto o Google sabe mais sobre nós do que qualquer governo. Em 2023, o valor de mercado da Amazon ultrapassou o PIB de 90% dos países (Fonte: Forbes, 2023). Chaykin previu um mundo onde o mercado não só substitui o Estado, mas o devora.

A Plex não domina só a economia; ela define a cultura. Se trata de uma sociedade pornográfica, onde tudo colocado de forma explícita. O conceito de “sociedade pornográfica” é uma metáfora utilizada para descrever uma cultura contemporânea marcada pela exposição excessiva, pela commoditização das experiências humanas e pela falta de profundidade, tudo orientado para o consumo imediato. Popularizado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, esse termo serve como uma crítica à obsessão moderna com a transparência e a visibilidade, onde valores como privacidade, introspecção e dignidade humana são sacrificados em prol do espetáculo e do entretenimento. A Plex lucra com a violência: financia gangues e transmite ao vivo os conflitos. Linck liga isso à nossa cultura de reality shows e à espetacularização da dor, como vídeos virais de brigas no TikTok. Chaykin imaginou um mundo que consome sofrimento como diversão, e nós já estamos nele.

Linck chama American Flagg! de “profética”, e os paralelos com o nosso tempo são, de fato, impressionantes. Howard Chaykin, ao criar essa distopia ambientada em 2031, não apenas antecipou eventos específicos que marcariam o mundo — como o colapso da União Soviética em 1991, o desastre nuclear de Chernobyl em 1986 e até uma pandemia global, que vivenciamos com a COVID-19 —, mas foi além, capturando tendências sociais e políticas que hoje definem nossa realidade de maneira profunda e perturbadora. Mais do que previsões isoladas, ele desenhou um futuro onde o neoliberalismo reina absoluto, as corporações substituem os Estados, a violência vira entretenimento, a indiferença social se normaliza e a privacidade se torna uma memória distante. O que era ficção na década de 1980 agora é o espelho do presente, e explorar essas conexões revela como o futuro imaginado por Chaykin já está entre nós.

Chaykin também acertou ao imaginar um mundo multipolar, onde o poder global se desloca das potências tradicionais para novas forças emergentes. Em American Flagg!, a União Brasileira das Américas, com Brasília como capital de uma América Latina unificada, e a Liga Pan-Africana desafiam a hegemonia do Norte. Essa visão antecipa a ascensão do Sul global, um fenômeno que vivemos hoje, mesmo que aos poucos, com o fortalecimento de blocos como o BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em 2023, o BRICS respondia por 32% do PIB global em paridade de poder de compra, superando o G7, de acordo com o FMI. Países como China e Índia redefinem o equilíbrio de poder, enquanto Brasil e África ganham influência em fóruns internacionais. Ao colocar o Atlântico Sul como protagonista, Chaykin capturou uma mudança geopolítica que, décadas depois, começa a se consolidar, mostrando como o futuro por ele imaginado já ecoa nas dinâmicas globais atuais. Sobre o Brasil no quadrinho, Linck comenta: “O Brasil se tornou uma mega potência. Hoje não existe mais o Brasil, existe a União Brasileira das Américas, que basicamente é a América Latina inteira. Inclusive aqui é dito que Brasília foi bandonada depois do ano de 1996, e pra lá depois só se mudaram bandidos, golpistas, cafetões, e eles produziram um novo governo. Um governo que dessa vez deu certo, não só porque fez o Brasil crescer, mas fez ele se expandir. Inclusive é divertido, porque isso acontece no segundo arco de histórias aqui do American Flag. Algumas das grandes cidades da União Brasileira das Américas é Brasília, capital, mas Havana. Sim, a segunda maior cidade depois de Brasília é Havana. Em caso você não sabe é a capital de Cuba, tá? Inclusive nesse segundo arco de histórias é descoberto que tem uma célula neonazista muito forte em Brasília.”

Por fim, a perda de privacidade, um dos pilares mais inquietantes de American Flagg!, encontra paralelo direto no nosso presente. Na Plexidade, tudo é monitorado: câmeras vigiam cada esquina, e os dados dos cidadãos são vendidos para lucro da corporação. Empresas como Meta e Google coletam informações pessoais incessantemente. Os paralelos entre American Flagg! e o presente não são meras coincidências — são o fruto de uma visão afiada sobre os rumos de um sistema que commoditiza a vida, transforma violência em lucro e erode os laços humanos.

American Flagg! não é só uma distopia dos anos 80 — é um alerta vivo. Howard Chaykin criou um mundo caótico que critica o neoliberalismo de sua época e prevê o que ele poderia se tornar. Hoje, com corporações mais fortes que governos, violência virando lucro e a indiferença se espalhando, o quadrinho nos confronta com um espelho desconfortável. Mas a obra vai além do diagnóstico: é uma denuncia contra a desumanização, contra um futuro onde tudo é mercadoria. Como Linck sugere, American Flagg! nos provoca a agir. A arte, especialmente os quadrinhos, pode ser um espelho e uma arma — nos mostra o perigo e nos inspira a resistir.

REFERÊNCIAS

O FUTURO É NEOLIBERAL? Como será 2031 segundo American Flagg!

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