“Femme Fatale”, lançada pelo The Velvet Underground no álbum The Velvet Underground & Nico (1967), abre com um aviso que ressoa como o tilintar de um sino funerário: “Here she comes, you better watch your step”. Não é uma saudação, mas uma sentença — ela chega, e sua presença já é uma ameaça. Interpretada pela voz gélida de Nico, a música transforma a figura clássica da femme fatale num espectro que dança entre a sedução e a destruição. “She’s going to break your heart in two, it’s true” não é uma promessa vazia; é uma profecia inevitável, dita com a calma de quem já viu o fim do jogo antes mesmo de ele começar. Aqui, o coração não apenas se parte — é fendido com precisão cirúrgica, um ato que exige tanto destreza quanto indiferença.
Essa abertura estabelece o tom da canção: um teatro de sombras onde a femme fatale é ao mesmo tempo atriz e marionetista, manipulando os fios de um desejo que ela não inventou, mas aprendeu a dominar. Em 1967, o Velvet Underground, sob o olhar de Lou Reed e a tutela artística de Andy Warhol, já desafiava as convenções do rock com sua crueza urbana e lirismo cortante. Femme Fatale não é apenas uma música — é um retrato em negativo de uma sociedade que exalta o feminino enquanto o condena.
A primeira estrofe mergulha na essência da personagem: “It’s not hard to realize / Just look into her false colored eyes”. Esses “olhos falsamente coloridos” são mais do que maquiagem ou artifício — são o espelho de uma identidade forjada, um disfarce que reflete o que os outros querem ver. Eles não mentem por capricho; mentem por necessidade, num mundo que transforma mulheres em telas para projeções alheias. “She builds you up to just put you down, what a clown” carrega uma ironia afiada — o “palhaço” não é ela, mas o tolo que sobe ao pedestal que ela oferece, apenas para despencar quando o truque se revela. A femme fatale não constrói para agradar; ela ergue para derrubar, uma arquiteta de ruínas emocionais.
A linha “See the way she walks / Hear the way she talks” transforma seus movimentos e palavras em armas silenciosas. Seu andar é uma coreografia de poder, cada passo um anzol lançado; sua fala é um veneno destilado em melodia, uma armadilha que prende antes que se perceba o laço. Ela não é uma força bruta — seu domínio está na sutileza, na arte de ser ao mesmo tempo desejo e destruição.
O refrão entra como um coro de juízes: “’Cause everybody knows (She’s a femme fatale) / The things she does to please (She’s a femme fatale) / She’s just a little tease (She’s a femme fatale)”. A repetição de “she’s a femme fatale” não é um grito de alarme, mas uma constatação fria — todos sabem, e mesmo assim caem. “The things she does to please” é uma facada de ironia: o prazer que ela oferece é uma isca, um presente envenenado que serve mais a ela do que a quem o recebe. “Just a little tease” subestima seu jogo apenas na superfície — o “pequeno” provocador é, na verdade, a chave de sua supremacia, uma provocação que desarma e domina.
Esse mantra cíclico não apenas define a personagem; ele a eterniza. A femme fatale não é uma pessoa, mas um arquétipo, uma sombra que atravessa séculos, das sereias de Homero às divas de filme noir. Na voz de Nico, porém, ela ganha uma modernidade crua — uma mulher das ruas de Nova York, não de um pedestal mitológico.
A segunda estrofe aprofunda a frieza do jogo: “You’re put down in her book / You’re number 37, have a look”. O “livro” dela não é um diário de conquistas, mas um registro de caça — cada vítima reduzida a uma cifra, um troféu descartável em uma coleção sem fim. “Number 37” é um golpe de despersonalização: você não é especial, apenas mais um na fila de tolos. “She’s going to smile to make you frown, what a clown” repete o tema do palhaço, mas agora com um sadismo quase brincalhão — o sorriso dela é uma arma que inverte emoções, transformando esperança em humilhação.
“Little boy, she’s from the street / Before you start, you’re already beat” traz o contexto à tona. Ela é “da rua” — não uma princesa de contos, mas uma sobrevivente das calçadas, onde a ingenuidade é um luxo que não se pode pagar. Sua origem é sua força: a rua a ensinou a jogar antes que o jogo começasse, e o “little boy” — infantilizado, ingênuo — já perdeu antes de mover a primeira peça. “She’s gonna play you for a fool, yes it’s true” sela o destino com uma certeza que não oferece escapatória.
Musicalmente, Femme Fatale é um contraste que corta fundo. O celesta de John Cale, com suas notas delicadas que lembram caixas de música, cria uma aura de inocência enganosa, como o canto de uma sereia antes do naufrágio. A guitarra de Lou Reed desliza em acordes simples, quase lânguidos, enquanto a bateria de Maureen Tucker pulsa com uma economia que sugere contenção — um ritmo que não acelera, mas espera, como a própria femme fatale à espreita. A voz de Nico, grave e desprovida de calor, não seduz no sentido convencional; ela comanda, com uma entonação que parece pairar acima do ouvinte, indiferente ao estrago que causa.
Esse minimalismo sonoro é o oposto do caos barulhento que o Velvet Underground poderia evocar — aqui, a suavidade é a armadilha, um veludo que esconde lâminas. A melodia embala, mas a letra fere, criando uma tensão que espelha o poder contraditório da protagonista.
Por trás da figura da mulher fatal, a música esconde uma crítica afiada. Ela não é um monstro autônomo — é um produto, moldado por um mundo que exige que as mulheres sejam ao mesmo tempo objeto de desejo e bode expiatório. “She’s from the street” sugere uma vida forjada na adversidade, onde a manipulação é menos um capricho e mais uma tática de sobrevivência. Seus “false colored eyes” não enganam por prazer, mas porque a verdade nua a tornaria vulnerável num jogo que ela não criou.
O verdadeiro fatal, então, não é ela, mas o sistema que a força a esse papel — e os homens que, sabendo de sua natureza (“’cause everybody knows”), ainda se deixam cair. A femme fatale de Reed e Nico não é celebrada nem condenada; ela é dissecada, revelada como um espelho onde a fragilidade masculina se reflete com mais clareza que a dela própria.
Sua força está na ambiguidade cortante: ela é vilã ou vítima? Predadora ou presa disfarçada? Para o ouvinte, Femme Fatale é um convite a olhar nos “false colored eyes” e perguntar — não quem ela é, mas por que continuamos caindo, mesmo sabendo que o tombo é certo. No fim, o Velvet Underground não nos dá uma canção sobre uma mulher; eles nos dão um espelho onde o desejo e a destruição dançam até o silêncio.