“All Tomorrow’s Parties”: A Máscara do Tempo e o Luto do Invisível

“All Tomorrow’s Parties”, lançada pelo The Velvet Underground no álbum The Velvet Underground & Nico (1967), abre com uma pergunta que ressoa como um réquiem: “And what costume shall the poor girl wear / To all tomorrow’s parties”. O “costume” aqui não é escolha, mas sina — um “hand-me-down dress from who knows where”, um vestido de segunda mão cuja origem se perdeu nos desvãos do descarte. Não é apenas tecido; é uma herança de despossessão, uma pele remendada que a “poor girl” veste para se apresentar num palco que não a acolhe. A repetição obsessiva dessa questão ao longo da música — três vezes, como um sino que marca horas mortas — não busca respostas; é um lamento que expõe a ironia cruel de um mundo onde até os marginalizados devem se fantasiar para existir.

Essa abertura, entoada pela voz glacial de Nico, é o portal para um universo de melancolia esticada no tempo. Lou Reed, o arquiteto das palavras, não narra uma história linear — ele monta um carrossel de desespero, onde a protagonista é ao mesmo tempo vítima e espectadora de sua própria decadência. Em 1967, enquanto a contracultura sonhava com revoluções coloridas, o Velvet Underground cavava as entranhas de Nova York para dar voz aos que sobravam nas margens.

A narrativa se desdobra em um relógio quebrado: “And where will she go, and what shall she do / When midnight comes around”. A meia-noite não é um fim, mas um reinício — o momento em que a máscara da festa cai e a “poor girl” enfrenta sua solidão. “She’ll turn once more to Sunday’s clown and cry behind the door” introduz o “palhaço de domingo” como uma figura ambígua: ele é a própria garota, reduzida a uma caricatura que diverte os outros enquanto esconde suas lágrimas, ou talvez um consolo ilusório que ela busca na exaustão do ciclo. A porta fechada é seu refúgio e sua prisão, um esconderijo onde o choro não ecoa para além das paredes.

A segunda estrofe aprofunda essa temporalidade circular: “Why silks and linens of yesterday’s gowns / To all tomorrow’s parties”. Os “sedas e linhos” de um passado perdido contrastam com os “Thursday’s rags” (trapos de quinta-feira), que ela não sabe o que fazer “when Monday comes around”. Reed joga com os dias da semana como engrenagens de uma máquina que tritura qualquer promessa de progresso. Quinta-feira, o dia do provérbio “Thursday’s child has far to go”, aqui não leva a lugar algum — apenas a mais trapos, mais repetição, mais choro atrás da porta. O “Sunday’s clown” retorna, um espelho da garota que se veste para entreter, mas nunca para ser vista.

O terceiro movimento cristaliza a tragédia: “For Thursday’s child is Sunday’s clown / For whom none will go mourning”. A inversão do ditado tradicional é um golpe de cinismo — a criança de quinta-feira, destinada a ir longe, torna-se o palhaço de domingo, uma figura ridícula que ninguém lamenta. A ausência de luto é o corte mais profundo: ela não é chorada porque nunca foi plenamente reconhecida como viva. “A blackened shroud / A hand-me-down gown / Of rags and silks – a costume” pinta sua figura final como uma morta simbólica, vestida com uma mortalha enegrecida e um vestido híbrido de farrapos e luxos gastos. É um figurino perfeito “for one who sits and cries / For all tomorrow’s parties” — não para celebrar, mas para velar a si mesma num baile eterno de ausências.

Essa imagem final é um epitáfio em vida. A garota não dança nas festas de amanhã; ela as observa, uma sombra vestida de restos, chorando por um futuro que já nasceu morto. Reed não lhe dá heroísmo ou redenção — sua força está na banalidade de sua dor, na ordinária invisibilidade que a torna universal.

Musicalmente, All Tomorrow’s Parties é uma elegia em câmera lenta. O piano repetitivo de John Cale, com ecos do minimalismo de La Monte Young, soa como o tique-taque de um relógio que perdeu o sentido do tempo — cada nota é um passo num corredor sem fim. A guitarra de Lou Reed entra em acordes sutis, quase fantasmagóricos, enquanto a bateria de Maureen Tucker marca um pulso seco, como o bater de um coração que insiste em continuar. A voz de Nico, plana e desprovida de calor, não consola — decreta, como uma profetisa que anuncia o inevitável. As cordas ocasionalmente dissonantes criam uma textura de desconforto, como o som de um violino fúnebre tocado em surdina.

Essa simplicidade sonora é o oposto do caos extrovertido que o Velvet poderia evocar — aqui, a repetição é a mensagem, um espelho do ciclo interminável da protagonista. A música não avança; ela gira, prendendo o ouvinte na mesma estagnação que a garota habita.

Por trás de seus trapos e lágrimas, All Tomorrow’s Parties é um comentário cortante sobre a exclusão. A “poor girl” não é uma personagem isolada — ela é a legião dos invisíveis que orbitam as festas dos outros, vestindo os restos de um mundo que os rejeita. “All tomorrow’s parties” não são celebrações, mas um ritual social onde os marginalizados devem se apresentar, mesmo sabendo que nunca pertencem. A escolha de “costume” em vez de “dress” é deliberada: ela não se veste, ela se disfarça, performando um papel que a sociedade lhe impôs.

No contexto de 1967, com a explosão da contracultura e suas promessas de liberdade, a música é um contraponto ácido. Enquanto hippies cantavam sobre amor e transcendência, Reed e Nico voltavam os olhos para os que não tinham acesso ao sonho — os que trocavam flores por farrapos, utopia por sobrevivência. A “poor girl” é o avesso do ideal sessentista: sua revolução é apenas continuar respirando, sua festa é um velório disfarçado.

“All Tomorrow’s Parties” termina como um ciclo que não se fecha — a garota segue sentada, chorando, vestida para as festas de amanhã que nunca a salvarão. “For all tomorrow’s parties” é a última nota, um eco que não promete nada além de mais portas, mais trapos, mais lágrimas escondidas. A música é um retrato em tons de cinza, uma elegia para os que vivem à margem do tempo, onde o amanhã é apenas o ontem com outro nome.

Sua força está na crueza que não romantiza. Cada “hand-me-down gown” é um lembrete da herança dos descartados; cada “Sunday’s clown” é um reflexo de nós mesmos, rindo para esconder o vazio. Para o ouvinte, All Tomorrow’s Parties é um convite a olhar atrás da porta — não para salvar a garota, mas para reconhecer que, em seus trapos e seu choro, ela carrega um pedaço de todos nós. O Velvet Underground não nos dá uma canção sobre pobreza; eles nos dão um espelho onde o ciclo da vida dança em silêncio, vestindo os restos de um sonho que nunca foi nosso.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *